Sobre a caligrafia no kamiza.

Por Ivan Melo (18.04.2024) 

Esta semana, nosso dojo recebeu uma nova peça de caligrafia para o kamiza, o altar para o qual nos voltamos no início e no final de cada aula.

A caligrafia é uma arte antiga e importante na maioria das culturas, mas especialmente nas culturas asiáticas, tem sido respeitada por milênios. Na China e no Japão, era considerada a mais alta forma de arte, porque através da escrita de alguém em um meio tão simples – papel e tinta preta – se podia ver a alma do artista. No dojo, a arte da escrita não era apenas uma maneira de decorar o espaço de prática, mas de transmitir ensinamentos, guiando as pessoas em direção aos objetivos de sua arte.

Enquanto encontramos um espaço mais permanente para nosso dojo no St Matthew’s Hall, pensamos que a palavra “Kenshō” seria adequada para ser exibida em nosso kamiza.

Kenshō significa “enxergar nossa verdadeira natureza“. É uma frase zen que encoraja a olhar além do que entendemos hoje em dia, vivendo em uma sociedade de materialismo e culto à personalidade, como o “eu”.

Estamos acostumados a ver o mundo a partir de posições dicotômicas: você e eu, mulher e homem, gostar e não gostar, bom e mau, e assim por diante. No entanto, a verdadeira natureza a que “kenshō” se refere é uma que vai além da dualidade.

A frase apareceu pela primeira vez no texto chinês “Sutra da Plataforma” no século VIII. O seguinte trecho é um comentário do mestre zen Shodo Harada sobre o sutra:

 “Essa ensinamento é o de realizar nossa verdadeira natureza diretamente – a mente verdadeira com a qual somos dotados desde o nascimento, antes de todas as ideias e conhecimentos que reunimos. Estes são o que nos obstruem. Esta verdadeira natureza, ininterrupta, é kenshō. Sem produzir ou inventar nada, alinhamos nosso corpo e nossa respiração. Não há nada que precisamos fazer acontecer para realizar essa verdadeira natureza. Mas não é algo que podemos conhecer seguindo nosso ego e fazendo o que quisermos, quando quisermos. Porque inventamos um ego e estamos vivendo de forma egoísta, precisamos deixar de lado o ego.

Para realizar a verdadeira natureza diretamente, devemos deixar de lado nosso sentido discriminativo das coisas. Caso contrário, mesmo que digamos que não vemos as pessoas em termos de diferenças, nós vemos. Precisamos ver o verdadeiro caráter humano de cada pessoa, em vez de filtrar nossas percepções pelos termos relativos de masculino, feminino, doente, saudável, velho, jovem, rico, pobre. E antes de podermos ver a natureza clara de outro, primeiro precisamos ver a nossa própria”.

Embora no Zen o principal veículo de prática seja o zazen, todas as artes tradicionais, quando bem instruídas e praticadas, têm o potencial de levar um praticante a essa compreensão mais profunda de si mesmo, além da dualidade. Esses mecanismos são frequentemente baseados em ação, já que as palavras muitas vezes dificultam, ocultam ou desviam a verdadeira compreensão, que não pode ser descrita.

Por isso, em um ambiente de dojo, a prática é feita principalmente em silêncio, por que nos curvamos ao entrar no dojo, nos curvamos para nossos parceiros e para nossos professores. É por isso que limpamos o espaço e ficamos atentos para ajudar visitantes e iniciantes; essas são todas ações que nos permitem abandonar nossa mente dualista centrada em si mesma, dentro e fora do dojo.

No entanto, mesmo quando essa realização é experimentada, a prática dessa habilidade deve ser sustentada, aplicada a todas as partes de nossas vidas, ou será perdida, como lembrou o grande mestre japonês do século XVII, Hakuin:

 “… a menos que você passe por este portão de prática, não pode eliminar obstruções causadas por aflições e ações e, portanto, não pode alcançar o estado de libertação e liberdade. Que pena seria isso, que perda”.

Dito isso, espero que você também aprecie a caligrafia exibida por sua beleza estética. Pois a beleza também nos encoraja a ir além.

 

Bibliografia

Platform Sutra – by Huineng, translation and commentary by Red Pine. 

Not One Single Thing: a commentary on the Platform Sutra by Shodo Harada.

 Zen no Sho – the calligraphy of Fukushima Keido Roshi, by Jason M Wirth. 

Hakuin on Kensho – a commentary by Albert Low 

Morning Dewdrops of the Mind – by Shodo Harada 

Zen Word, Zen Calligraphy – Eido Tai Shimano